Joe Speedboat
Recomendo
Fransje, um jovem garoto da remota localidade de Lomark, passa quase um ano em coma depois de sofrer um acidente que o torna quase inválido. Não anda ( a não ser na sua charanga, uma espécie de carrinho) e não fala (utiliza largamente a escrita com seu braço sadio para expressar-se e entender o mundo). Sua vida, resumida pelo humor ácido com que vê e enxerga as coisas, é entremeado com os caudalosos cadernos onde passa a descrever o que passa ao seu redor e da própria Lomark e os ensinos milenares do mestre samurai Miyamoto Musashi, de quem Fransje retira a sabedoria para lidar com seu dia a dia. Mas tudo muda quando Joe, um garoto recém chegado a Lomark, entra na vida de Fransje trazendo um alargamento de horizontes nunca pensado pelo pequeno personagem. Narrado a partir da ótica de Fransje, sabemos que Joe é um menino engenhoso, que ocupa seu tempo fabricando pequenas bombas caseiras e o responsável pela construção do pequeno avião que levou Fransje a ver do alto tudo o que tem meticulosamente colocado em seus diários. Este é sim um livro sobre amizade. Mas seria definir minimamente este livro que só comecei a gostar — confesso — lá pela metade, quando percebi que estava diante de uma obra bem mais profunda. Por isso mesmo meu encantamento com a literatura holandesa. Desde que li Tirza (Arnon Grunberg, também publicado pela Rádio Londres) ano passado, quando Hofmeester ainda tem me tirado do sério na tentativa de compreender suas nuances, me decidi a buscar outros títulos contemporâneos holandeses. E é claro que há um grande abismo entre esses dois títulos e, portanto, muito pouco referencial de análise, mas vejamos. Se em Tirza você adentra na mente de um psicopata, em Joe Speedboat você toma parte na redescoberta da forma de viver a partir de um menino que tem sérias limitações, mas que aprende a converter sua aparente fraqueza numa força capaz de abrir horizontes antes inimagináveis. Fransje é um personagem fascinante: sabe como contar a história de sua Lomark. No cronista Fransje você se depara com passagens como esta: “Quando eu espiava pessoas que conhecia, elas se tornavam estranhas para mim. Criava-se certa distância e, paradoxalmente, não era a intimidade que aumentava, mas a sensação de alienação.” (Pag. 189). Ele é hábil na forma de observar, captar, compartilhar seus sentimentos, sua raiva, seu embevecimento pelo que vê, sua opinião política, o dia a dia dos moradores de Lomark, o desaparecimento inexplicável do padrasto de Joe, depois de construir por meses, um barco, seu amor silencioso pela garota PJ. Ele sabe que é um amor impossível de ser consumado, diante das suas limitações. Essa impossibilidade é lindamente e tristemente registrada no trecho abaixo: “Não queria que eles me vissem. Subitamente, uma grande raiva me invadiu ao pensar que eu não podia ficar de pé, e que só me restava olhar para ela, raquítico e mudo, de baixo para cima. Tinha de me obrigar a não imaginar o homem que poderia ter me tornado se eu não… daquela altura em que a olharia nos olhos, quais palavras usaria para fazê-la rir da mesma maneira que Joe ou o tal idiota do escritor faziam. (…) Na presença de PJ, meu defeitos se realçavam, e eu me encolhia e encurvava mais do que já fazia normalmente.” (Pag. 186-187). Focando em Joe, Fransje se esmera. Seja no aprofundamento da sua amizade com Joe que vai da adolescência até vermos os dois já adultos, seja nas peripécias que Joe cria e sempre procura incluir Fransje, é quando seu melhor como contador se sobressai, quando ele nos ensina, mesmo que muitas vezes o faça às expensas do mestre Musashi, que basta uma mão amiga (no caso deles, um braço!) para que não se passe na vida sem de fato vivê-la. Talvez Fransje não saiba, mas eu trocaria os ensinos de Musashi por um daqueles diários… Ah, leiam o livro! É muito bom. E vocês saberão do que estou falando.
Paulo
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